quarta-feira, 30 de junho de 2010

— A gente não se vê faz algum tempo, mãe.


— E por quê?
— Mãe - ele começou. A voz tremia.
— Mãe, é tudo tão difícil.

Caio F.

São saudades de um mundo contente feito céu estrelado.


Feito flor abraçada por borboleta. Feito café da tarde com bolinho de chuva. Onde a gente se sente tranquilo como se descansasse num cafuné. Onde, em vez de nos orgulharmos por carregar tanto peso, a gente se orgulha por ser capaz de viver com mais leveza.

Ana Jácomo

sábado, 26 de junho de 2010

Acontecem coisas estranhas quando estou num espaço muito amplo.


Uma vontade de voar, parece que bastaria abrir os braços para fundir-me com o céu. Ao mesmo tempo, dá vontade também de ficar na terra, e viver, viver muito, com todas as miudezas do cotidiano. Impressão de ser maior que tudo, sensação de força, certeza de vitória, vitória tão certa e fácil como a coisas da natureza que se mostram ali. E também uma grande humildade, consciência de ser ínfimo em relação ao azul-azul do céu, ao azul-em-cor do rio. Procuro palavra para definir o que sinto e não encontro. Talvez elas nem sequer existam, talvez seja apenas um fluxo mais forte de vida abrindo os sentidos, embrutecendo o raciocínio.

Caio F.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Ela sorriu,



porque tinha esses lances assim, meio provocantes, e disse:
- Agora estamos quites.
Meio pateta, como costumam ser os homens, em férias ou não, ele rosnou:
- Hã?

Caio F.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Estrada sem sol e resto de ilusões perdidas.



Trânsito difuso para o caminho mais próximo do que esteve ao alcance do coração. Duas chamas. Pouca vida. Quase nada sobre a mesa. Lembranças e fragmentos de um futuro recente. Rente aos olhos e distante de acontecer. Real? Imaginário? Fantasia? Movimentos transitórios misturados a redes invisíveis a transmutar em sonhos e pensamentos imperfeitos. Um salto rasante no grito da noite. Na soturna e desesperadora espera pela hora da estrela. Sem lógica sempre foram os devaneios mais interessantes

Desconheço o Autor.

sábado, 12 de junho de 2010

Chega em mim sem medo, toca no meu ombro,


olha nos meus olhos, como nas canções do rádio. Depois me diz: — “Vamos embora para um lugar limpo. Deixe tudo como está. Feche as portas, não pague as contas nem conte a ninguém. Nada mais importa. Agora você me tem, agora eu tenho você. Nada mais importa. O resto? Ah, o resto são os restos. E não importam.


Caio F.

Olha, falta muito pouco tempo,


e se eu não te disser agora talvez não diga nunca mais, porque tanto eu como você sentiremos uma falta enorme dessas coisas, e se elas não chegarem a ser ditas nem eu nem você nos sentiremos satisfeitos com tudo que existimos, porque elas não foram existidas completamente, entende, porque as vivemos apenas naquela dimensão em que é permitido viver, não, não é isso que eu quero dizer, não existe uma dimensão permitida e uma outra proibida, indevassável, não me entenda mal, mas é que a gente tem tanto medo de penetrar naquilo que não sabe se terá coragem de viver, no mais fundo, eu quero dizer, é isso mesmo, você está acompanhando meu raciocínio?

Caio F.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Cá entre nós: fui eu quem sonhou que você sonhou comigo?


Ou teria sido o contrário?
Sonhei que você sonhava comigo. Mais tarde, talvez eu até ficasse confuso, sem saber ao certo se fui eu mesmo quem sonhou que você sonhava comigo, ou ao contrário, foi quem sabe você quem sonhou que eu sonhava com você. Não sei o que seria mais provável. Você sabe, nessa história de sonhos — falo o óbvio —, nunca há muita lógica nem coerência. Além disso, ainda que um de nós dois ou os dois tivéssemos realmente sonhado que um sonhava com o outro, também é pouco provável que falássemos sobre isso. Ou não? Sei que o que sei é que, sem nenhuma dúvida:
Sonhei que você sonhava comigo. Certo? Não, talvez não esteja nada certo. Também não era isso o que eu queria ou planejava dizer. Pelo menos, não desse jeito embaçado como uma vidraça durante a chuva. Por favor, apanhe aquele pequeno pedaço de feltro que fica sempre ali, ao lado dos discos. Agora limpe devagar a vidraça — quero dizer, o texto. Vá passando esse pedaço de feltro sobre o vidro, até ficar mais claro o que há por trás. Lago, edifício, montanha, outdoor, qualquer coisa. Certamente molhada, porque só quando chove as vidraças embaçam. Será? Não tenho certeza, mas o que quero dizer, disso estou certo, começa assim:
Sonhei que você sonhava comigo. Agora penso que é também provável que — se realmente fui mesmo eu a sonhar que você sonhou comigo; e não o contrário — eu não estivesse sonhando. Nada de sono, cama, olhos fechados. É possível que eu estivesse de olhos abertos no meio da rua, não na cama; durante o dia, não à noite — quando aconteceu isso que chamo de sonho. Embora saiba que — se foi dessa forma assim, digamos, consciente — então não seria correto chamá-la de sonho, essa imagem que aconteceu —, mas de imaginação ou invento até mesmo delírio, quem sabe alucinação(..)

Caio F.

O céu está cada vez mais claro.


Alguns pássaros começam a cantar. Tenho vontade de cantar também. Um canto feito de palavras, não como o antigo.
'Daqui a pouco vai amanhecer. Há um vago cheiro de mar solto nas ruas.'

Caio F.

Mas combinaram:


Quatro noites antes, quatro depois do plenilúnio, cada um em sua cidade, em hora determinada, abrem as janelas de seus quartos de solteiros, apagam as luzes e abraçados em si mesmos, sozinhos no escuro, dançam boleros tão apertados que seus suores se misturam, seus cheiros se confundem, suas febres se somam em quase noventa graus(…) Lentos boleros que mais parecem mantras. (…) Desde então, mesmo quando chove ou o céu tem nuvens, sabem sempre quando a lua é cheia. E quando mingua e some, sabem que se renova e cresce e torna a ser cheia outra vez e assim por todos os séculos e séculos porque é assim que é e sempre foi e será, se Deus quiser e os anjos disserem Amém. E dizem, vão dizer, estão dizendo, já disseram.

Caio F.

sábado, 5 de junho de 2010

Então, de repente, sem pretender,



respirou fundo e pensou que era bom viver. Mesmo que as partidas doessem, e que a cada dia fosse necessário adotar uma nova maneira de agir e de pensar, descobrindo-a inútil no dia seguinte - mesmo assim era bom viver. Não era fácil, nem agradável. Mas ainda assim era bom. Tinha quase certeza.

Caio F.

'Brotam espaços azuis quando penso.



No meu pensamento, você nunca me critica por eu ser um pouco tolo, meio melodramático, e penso então tule nuvem castelo seda perfume brisa turquesa vime. E deito a cabeça no seu colo ou você deita a cabeça no meu, tanto faz, e ficamos tanto tempo assim que a terra treme e vulcões explodem e pestes se alastram e nós nem percebemos, no umbigo do universo. Você toca minha mão, eu toco na sua.


Caio F.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Caminhavam assim, lembrando juntos letras de bossa-nova.



Ela imitava Nara Leão: se-alguém-perguntar-por-mim. Ele, Dick Farney: pelas-manhãs-tu-és-a-vida-a-cantar. Nada sabiam de punks, darks, neons, cults, noirs. Eram tão antigos caminhando de mãos dadas naquela areia luminosa, macia de pisar quando os pés afundam nela lentamente. Tão bom encontrar você, um cantinho, um violão.

Caio F.

Desligue a música, agora.


Seja qual for, desligue. Contemple o momento presente dentro do silêncio mais absoluto. Mesmo fechando todas as janelas, eu sei, é difícil evitar esses ruídos vindos da rua. Os alarmes de automóveis que disparam de repente, as motos com seus escapamentos abertos, algum avião no céu, ou esses rumores desconhecidos que acontecem às vezes dentro das paredes dos apartamentos, principalmente onde habitam as pessoas solitárias. Mas não sinta solidão, não sinta nada: você só tem olhos que olham o momento presente, esteja ele — ou você — onde estiver. E não dói, não há nada que provoque dor nesse olhar.


Caio F.

Manda-me tudo pelo vento:


envolto em nuvens, selado com
estrelas tingido de arco-íris, molhado de infinito
(lacrado de oriente, se encontrares).

Caio F.

Ela era bonita.


Mas não era bonita e só - como a maioria dos bonitos, ela era bonita e tinha muitas outras coisas na bagagem.

Caio F.

Continuo achando graça nas coisas,


gostando cada vez mais das pessoas, curiosa sobre tudo, imune ao vinagre, às amarguras, aos rancores.

Zélia Gattai.